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A PEC do retrocesso (por Ramiro Castro)

A PEC do retrocesso (por Ramiro Castro)

Entra, como de praxe de forma açodada e sem debate público, na ordem do dia no Congresso Nacional uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que visa destroçar os atuais marcos normativos relativos às áreas de saúde, educação e investimento público (BNDES). Dentre as proposições, acaba com a obrigatoriedade de gasto mínimo em saúde e educação, o que anteriormente somente se viu em Constituições promulgadas em regimes autoritários no Brasil, como durante a Ditadura Militar. Atualmente nossa Carta Magna exige que Estados e Municípios apliquem, no mínimo, 25% de sua receita na educação e de 12% a 15% na Saúde.

A PEC 186/2019, agora com a redação dada pelo parecer substitutivo do Relator Senador Márcio Bittar do MDB, ao, dentro outras aberrações, revogar expressamente o caput e o parágrafo 1º do art. 212 e parágrafos 2 e 3 do art. 198 da Constituição, está em flagrante desarmonia com o texto Constitucional como um todo, bem como abusa do poder constituinte derivado ao atentar contra a vontade do legislador constituinte que elaborou o pacto social de 88 mediante ampla participação popular. É, ainda, inconstitucional pois afeta sobremaneira e de forma cristalina o direito à educação e saúde do povo Brasileiro, ao revogar o principal dispositivo capaz de efetivar estes direitos sociais, e, portanto, incorre em violação aos preceitos dos direitos humanos e fundamentais, não apenas meras normas programáticas, mas dotadas de eficácia e efetividade, pelo princípio da proibição do retrocesso social, reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, pois uma vez atingido determinado patamar de um direito, este não pode ser suprimido ou reduzido.

Sobre a vedação ao retrocesso social, diz o ilustre constitucionalista Canotilho:

“A proibição do retrocesso nada pode fazer contra as recessões e crises econômicas […], mas o princípio em análise limita a reversibilidade dos direitos adquiridos”, sob pena de afronta aos postulados da legítima confiança e da segurança dos cidadãos (…)

O reconhecimento desta protecção de ‘direitos prestacionais de propriedade’, subjetivamente adquiridos, constitui um limite jurídico do legislador e, ao mesmo tempo, uma obrigação de prossecução de uma política congruente com os direitos concretos e as expectativas subjectivamente alicerçadas. A violação do núcleo essencial afectvado justificará a sanção de inconstitucionalidade relativamente a normas manifestamente aniquiladoras da chamada ‘justiça social\'”.

Cumulado com o princípio do não-retrocesso social, que preserva a garantia do patrimônio jurídico de todos os cidadãos, há a vedação da proteção insuficiente/deficiente, o que também parece ser o caso do texto da referida PEC, pois frente às flagrantes e notórias debilidades de nossos sistema educacional público e em meio a uma pandemia que já vitimou milhares de brasileiros e cujas sequelas infelizmente nos acompanharão nos anos vindouros, afora a necessidade de ampliação do SUS, estabelece essencialmente o contrário.

Ademais, há limitações materiais, para além das formais (como o quórum qualificado no parlamento) para a aprovação tanto de legislação infraconstitucional, quanto de emendas Constitucionais, não podendo exceder limites que descaracterizem a Constituição Cidadã de 1988, conforme expresso tanto no próprio texto Magno, em seu artigo 60, parágrafo 4º, bem como o STF já sedimentou o entendimento de que há proteção a normas não passíveis de supressão por emenda constitucional em outras partes do texto, por se tratarem de princípios imutáveis, não tratando-se o rol supracitado como exaustivo, mas tão somente exemplificativo. O entendimento do STF é de que cabe Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra emenda constitucional, quando a alegação é de violação e/ou contrariedade à clausula pétrea e a princípio imutável da Constituição originária (Precedentes das ADI 939 e ADI 1.946).

Ora, se já nos impediram de avançar enquanto sociedade por vinte anos (PEC do teto de gastos), agora os “reformadores” retrocedem claramente no texto, o que possibilita uma interpretação nítida de flagrante ataque aos preceitos Constitucionais e não merece guarida em nosso ordenamento jurídico. A hermenêutica Constitucional não pode aceitar o texto tal como está, mesmo se aprovado por 308 deputados e 49 senadores, pois o princípio do não-retrocesso social (Bem ilustrado no texto do PIDESC, ainda que este tratado não tenha atualmente status Constitucional no país por não ter sido aprovado de acordo com a EC 45/2004) pois, conforme apontado pelo Ministro Ricardo Lewandowski:

“o núcleo essencial dos direitos já realizado e efetivado através de medidas legislativas […] deve considerar-se constitucionalmente garantido”, sendo inconstitucional a sua supressão, “sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios”.

“O princípio da proibição de retrocesso, portanto, impede que, a pretexto de superar dificuldades econômicas, o Estado possa, sem uma contrapartida adequada, revogar ou anular o núcleo essencial dos direitos conquistados pelo povo. É que ele corresponde ao mínimo existencial, ou seja, ao conjunto de bens materiais e imateriais sem o qual não é possível viver com dignidade”.

Ademais, a referida PEC, por sua redação e por sua justificativa, demonstra preocupação (excessiva) com a questão fiscal e orçamentária, buscando minimizar o alegado déficit monetário através de um déficit social maximizado, o que nosso Pretório Excelso já definiu como menos importante do que o direito à vida da população, sendo o direito à saúde o tributário principal, condição sine qua non, para a realização da proteção ao bem jurídico tutelado mais importante de todos, qual seja, a vida humana. Não pode o legislador buscar sanar problemas orçamentários reduzindo o orçamento dos direitos sociais fundamentais, sobretudo o direito à saúde:

(…) O direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa consequência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional.

A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQUENTE. O caráter programático da regra inscrita no artigo 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o poder público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.(Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 271.286-8, RS., Relator Ministro Celso de Mello, Diário da Justiça da União, de 24/11/2000)

Ainda, no que diz respeito ao direito à educação, como harmonizar a exigência do art.206, de garantia de padrão de qualidade, com a retirada dos já parcos recursos investidos em educação básica no país? Não há como extrair, da fundamentação do texto apresentado e de sua literalidade, outra conclusão senão a de que é uma PEC que chancela o retrocesso social, e, portanto, não pode ser concebida como parte de nosso arcabouço jurídico-institucional, padecendo de diversos vícios que ensejam a declaração de sua inconstitucionalidade.

 

O artigo completo também foi publicado no site Sul 21.